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O Princípio da Confiança e Crimes Negligentes em Direito Penal Médico


A prática médica contemporânea caracteriza-se pela alta especialização e crescente divisão do trabalho, onde diversos profissionais atuam de forma conjunta em procedimentos cada vez mais complexos. Neste contexto, o Princípio da Confiança emerge como elemento fundamental na análise da responsabilidade penal dos profissionais de saúde, especialmente em casos de crimes negligentes. Este princípio, originalmente desenvolvido para delitos culposos de trânsito, ganhou significativa relevância na área médica como critério delimitador do risco permitido na imputação jurídico-penal, oferecendo um importante referencial teórico tanto para a acusação quanto para a defesa em processos criminais envolvendo erros médicos.


Conceito e Fundamentos do Princípio da Confiança

O Princípio da Confiança pode ser definido como o postulado segundo o qual, em determinadas situações sociais, os participantes de uma atividade podem confiar que os demais intervenientes também se comportarão de maneira correta, respeitando as normas de cuidado aplicáveis. Este princípio parte da premissa de que "a vida cotidiana está imersa em riscos dos mais variados... tais riscos são considerados imprescindíveis ao modelo social contemporâneo e por isso mesmo permitidos pelo ordenamento jurídico"[1].

Inicialmente elaborado para lidar com infrações no trânsito, este princípio consolidou-se na ideia de que, em atividades rotineiras, seria inviável exigir que cada participante controlasse constantemente todas as ações dos demais. No trânsito, por exemplo, "os participantes podem confiar que os demais intervenientes também se comportarão de maneira correta, pois, do contrário, seria inviável a prática dessa atividade"[1].


Bases teóricas e evolução jurídica

O fundamento material do Princípio da Confiança encontra-se no "princípio da auto-responsabilidade de terceiros, pois esses também são seres responsáveis"[2]. Isso significa que cada participante de uma atividade coletiva é responsável primordialmente por seus próprios atos, não podendo ser responsabilizado, a princípio, por falhas cometidas por outros.

Com a evolução da teoria jurídico-penal, o Princípio da Confiança expandiu seu escopo de aplicação, "ampliando-se seu horizonte de aplicação para além dos delitos culposos de trânsito, seu postulado encontra razão de ser diante de toda e qualquer conduta social da qual participem duas ou mais pessoas, notadamente de atividades desenvolvidas por equipes, em autêntica divisão de trabalho"[3].

No sistema funcionalista do direito penal, este princípio funciona como critério de imputação objetiva, sendo considerado um elemento fundamental na análise da tipicidade de condutas em atividades coletivas complexas, tendo como consequência "o reconhecimento da atipicidade do fato, pela ausência de desvalor objetivo de ação"[1] quando o agente confiou legitimamente na conduta correta dos demais.


O Princípio da Confiança na Prática Médica

Na medicina, o Princípio da Confiança assume contornos particulares devido à natureza complexa dos procedimentos e à necessária divisão de trabalho entre especialistas. A moderna medicina é caracterizada por procedimentos que exigem a participação simultânea de diversos profissionais, cada um com conhecimentos específicos e responsabilidades definidas.


Divisão de trabalho e hierarquia

Em procedimentos médicos, especialmente de procedimentos com múltiplos profissionais incluindo os cirúrgicos, é comum a atuação de equipes compostas por profissionais com diferentes especialidades e funções. Nesse contexto, "o princípio da confiança e do princípio da divisão do trabalho delimitando as responsabilidades dos diversos profissionais intervenientes simultânea ou sucessivamente no ato médico"[4] são fundamentais para determinar a extensão da responsabilidade de cada um.

A aplicação deste princípio é particularmente relevante em duas formas de organização do trabalho médico:

1.      Equipes horizontais: compostas por profissionais com competências complementares que atuam em um mesmo nível hierárquico.

2.     Equipes verticais: caracterizadas por relações hierárquicas definidas, onde "surge para o chefe de equipa o dever de coordenação da atividade da equipa, e em certas circunstâncias um dever de controlo e fiscalização da atividade dos membros da equipa"[4].


Limites do princípio na medicina

Apesar de sua importância, o Princípio da Confiança encontra limitações significativas na prática médica. "Em determinadas situações como é a da relação entre o médico em formação e o orientador, coloca-se a questão de até onde pode ou não atuar o princípio da confiança"[4]. Isso significa que em relações hierárquicas ou quando há indícios de que outro profissional não está cumprindo adequadamente seus deveres, a confiança pode deixar de ser legítima.

Ademais, o princípio não se aplica de forma absoluta quando há circunstâncias concretas que sugerem que os demais profissionais não estão obedecendo aos padrões de cuidado exigidos, ou quando existe um dever específico de supervisão e controle.


Crimes Negligentes na Prática Médica

A responsabilidade penal do médico geralmente está associada a crimes culposos, caracterizados por negligência, imprudência ou imperícia. Como define o Código Penal brasileiro em seu artigo 18, II, o crime é "culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia"[5].


Caracterização da culpa médica

A negligência médica é definida como a "conduta omissiva ou desleixada do médico, expondo o paciente a riscos desnecessários"[6]. Segundo o Manual de Ética em Ginecologia e Obstetrícia do Cremesp, "a negligência evidencia-se pela falta de cuidado ou de precaução com que se executam certos atos. Caracteriza-se pela inação, indolência, inércia, passividade. É um ato omissivo"[6].

A imprudência refere-se à realização de atos sem o devido cuidado ou sem a adoção das técnicas atuais mais adequadas previstas na literatura.

Por sua vez, a imperícia está relacionada à falta de habilidade técnica para realizar determinado procedimento - e, neste sentido, os médicos especialistas tem significativa vantagem sobre médicos generalistas eis que, sendo especialistas, não podem ser considerados imperitos, fechando, dessa forma, uma das portas possíveis para sua condenação por crime culposo. Essas três modalidades de culpa podem fundamentar a responsabilização penal do médico.


Principais crimes culposos na medicina

"No exercício da profissão médica, pode haver a prática de diversos crimes, sendo os mais comuns os delitos de lesão corporal, homicídio culposo e, em situações mais raras, o homicídio doloso"[7]. Além desses, também são relevantes:

1.      Omissão de socorro: quando o médico deixa de prestar assistência quando necessária[8].

2.     Falsidade de atestado médico: considerado crime contra a fé pública quando o médico "fornece atestado falso no exercício de sua profissão"[9].

3.     Exercício ilegal da medicina: quando o profissional excede os limites de sua habilitação[9].


Para que seja configurada a responsabilidade penal, é essencial estabelecer o nexo causal entre a conduta do médico e o resultado danoso. "Para que um médico seja responsabilizado penalmente, é necessário provar que a conduta do profissional possui relação direta com o dano"[10].


O Princípio da Confiança como Estratégia de Defesa

No caso de médicos acusados de crimes culposos, o Princípio da Confiança constitui importante elemento de defesa, especialmente em procedimentos realizados em equipe. A argumentação defensiva pode sustentar que o profissional agiu dentro dos padrões exigíveis para sua especialidade, confiando legitimamente que os demais membros da equipe também o fariam.


Individualização da responsabilidade

Em procedimentos realizados por equipes médicas, a delimitação da responsabilidade individual é essencial. Diferentemente dos crimes dolosos, nos crimes culposos "não se pode falar aqui como nos crimes dolosos na 'teoria do domínio do fato' como critério de autoria pois que aqui não existe uma atuação conjunta, consciente e dolosa dos intervenientes"[4]. Isso significa que cada profissional deve responder por suas próprias falhas, e não pelas falhas de toda a equipe.

Quando ocorrem erros em procedimentos médicos coletivos, "importa desde logo delimitar o âmbito de responsabilidade de cada um no dano ocorrido, o que será feito através do princípio da confiança e do princípio da divisão do trabalho"[4]. Esta abordagem permite uma atribuição mais justa de responsabilidades.


O ônus da prova e o "in dubio pro reo"

O médico, como qualquer acusado, "contrai uma responsabilidade criminal quando causa um dano ao seu paciente em virtude de erro médico, a não ser que prove inexistência de sua culpabilidade"[11]. Entretanto, "a condenação criminal do médico, assim como a de qualquer cidadão, somente poderá ocorrer diante da certeza da autoria e da materialidade (comprovação da existência de crime)"[9], além do "nexo de causalidade" entre a conduta e o evento danoso.

Em caso de dúvida, deve prevalecer o princípio do in dubio pro reo, ou seja, "na dúvida, a favor do réu"[9]. Esta garantia processual é fundamental para evitar condenações injustas em área tão complexa como a medicina.


O consentimento informado como elemento de defesa

Embora não exclua por si só a responsabilidade penal em casos de erros graves, o consentimento informado do paciente pode ser um elemento relevante na defesa. "Nas decisões sobre assistência à saúde dos pacientes, os médicos devem levar em consideração o documento Consentimento Livre e Esclarecido"[12].

O consentimento informado demonstra que o paciente foi devidamente esclarecido sobre os riscos inerentes ao procedimento, o que pode ser considerado na análise da culpabilidade do médico em determinadas situações.


Conclusão

O Princípio da Confiança representa um critério fundamental para a delimitação da responsabilidade penal em crimes negligentes na prática médica, especialmente em procedimentos realizados em equipe. Sua aplicação permite equilibrar a proteção dos pacientes contra erros médicos graves e a segurança jurídica dos profissionais de saúde, que não podem ser responsabilizados por falhas cometidas por outros em áreas fora de sua competência direta.

Na complexa realidade da medicina contemporânea, caracterizada pela alta especialização e divisão de trabalho, o Princípio da Confiança mostra-se essencial para uma imputação penal justa e proporcional. No entanto, sua aplicação não é absoluta, encontrando limites nas relações hierárquicas, na delegação de funções e em situações em que há motivos concretos para suspeitar que outro profissional não está agindo adequadamente.

Os operadores do direito e os profissionais de saúde devem compreender adequadamente este princípio para que possam, respectivamente, promover um processo penal justo e adotar práticas que minimizem os riscos jurídicos sem comprometer a qualidade do atendimento aos pacientes. Somente assim será possível conciliar o desenvolvimento da medicina com a proteção dos direitos fundamentais à vida e à integridade física.



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