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Relacionamentos Abusivos e Autoridades: O Caso Renato de Ávila Viana e a Aplicação da Lei Maria da Penha

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O fenômeno dos relacionamentos abusivos envolvendo autoridades em posições de poder representa um desafio adicional no combate à violência doméstica. Quando o agressor ocupa posição privilegiada na hierarquia social ou estatal, as vítimas frequentemente enfrentam obstáculos ainda maiores para buscar justiça. Este artigo analisa essa problemática, com foco especial no emblemático caso do ex-diplomata Renato de Ávila Viana, cuja carreira no Itamaraty perdurou por anos apesar de um extenso histórico de violência contra mulheres.


A dinâmica de poder em relacionamentos abusivos

Relacionamentos abusivos são caracterizados por comportamentos que ultrapassam os limites do que se constitui como saudável, envolvendo principalmente violências de natureza sexual, psicológica e física[1]. Quando o agressor ocupa posição de autoridade, a dinâmica de poder torna-se ainda mais desequilibrada, criando barreiras adicionais para que as vítimas busquem ajuda ou rompam o ciclo de violência.

Nestas relações, os jogos de poder são características marcantes dos abusadores. A posse do outro, a dominação da vontade, do corpo, dos pensamentos e das emoções torna a mulher refém da situação[1]. Esta dinâmica se intensifica quando o agressor possui capital social, prestígio profissional ou recursos financeiros significativos que podem ser mobilizados para silenciar denúncias.

As vítimas frequentemente permanecem nesses relacionamentos por diversos fatores, incluindo dependência financeira e emocional. Como relatado em estudos sobre o tema: "você gosta da pessoa e você se submete a isso porque você depende financeiramente da pessoa, você tem criança pequena em casa pra cuidar, então tem uma série de fatores que acabam (fazendo você) aceitar um relacionamento assim..."[1]. Em casos envolvendo autoridades, o medo das consequências sociais e profissionais de enfrentar um agressor poderoso constitui barreira adicional.


A Lei Maria da Penha e seu papel transformador

A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, representa um marco histórico no enfrentamento à violência doméstica no Brasil. A legislação é resultado de uma longa luta por justiça, homenageando Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica-bioquímica cearense que sobreviveu a duas tentativas de homicídio perpetradas por seu então marido[2].

Após quase 20 anos de luta sem que o agressor fosse devidamente julgado, Maria da Penha, com apoio de organizações de direitos humanos, denunciou a omissão do Estado brasileiro junto à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)[2]. Essa mobilização resultou na lei que tornou mais rigorosa a punição para agressões contra mulheres no âmbito doméstico e familiar[3].

Entre as inovações da lei, destacam-se: a possibilidade de prisão em flagrante ou preventiva dos agressores; o aumento do tempo máximo de detenção de um para três anos; e a implementação de medidas protetivas como o afastamento do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação da vítima e seus filhos[3]. Importante ressaltar que a lei transferiu a violência doméstica da esfera privada para a esfera dos direitos humanos, assumindo o Estado a responsabilidade pelo processamento e julgamento destes delitos[2].


O caso Renato de Ávila Viana: crônica de uma impunidade anunciada

O caso do ex-diplomata Renato de Ávila Viana exemplifica como posições de poder podem proteger agressores e prolongar ciclos de violência. Viana, que ocupava o cargo de primeiro-secretário do Itamaraty, acumulou um histórico de agressões contra mulheres que se estendeu por anos antes que medidas definitivas fossem tomadas.

Em setembro de 2018, Viana foi preso após vizinhos acionarem a polícia ao ouvirem gritos de socorro vindos de seu apartamento[4]. Este episódio resultou em sua detenção temporária, sendo liberado após pagamento de fiança. Posteriormente, em 18 de outubro do mesmo ano, foi preso preventivamente atendendo ao pedido de uma ex-namorada que o havia acusado de tê-la agredido com uma cabeçada na boca, arrancando-lhe um dente e alterando sua mordedura[4].

A condenação mais recente ocorreu em novembro de 2020, quando a Justiça do Distrito Federal o sentenciou a cinco anos e dez meses de prisão por agredir outra ex-namorada[5]. Segundo a sentença, o réu foi à casa da vítima tentar reatar o relacionamento e, diante da recusa, passou a agredi-la "com safanões e segurou fortemente seu rosto, pressionado-o ao ponto de fazer se soltar uma prótese dentária"[5][6].

O juiz Wellington da Silva Medeiros, responsável pela condenação, descreveu Viana como "de uma perversão extremada" e "pessoa de personalidade machista, que vê na mulher mero objeto de satisfação de suas vaidades"[5]. A sentença revelou que o histórico de agressões do ex-diplomata remontava a 2007[5], evidenciando mais de uma década de comportamento violento.

Apesar dos repetidos episódios de violência, Viana permaneceu em seu cargo diplomático até setembro de 2018, quando finalmente foi demitido do Itamaraty[4]. Sua demissão teve como base o fato de ele não levar, em sua vida privada, uma conduta compatível com suas funções no serviço público[4].

Após cumprir parte de sua pena e progredir para o regime aberto em março de 2019[7], Viana descumpriu as medidas cautelares impostas e tornou-se foragido da justiça. Foi capturado finalmente em dezembro de 2021 em Januária, Minas Gerais, durante operação policial realizada em uma academia[8][9], sendo posteriormente transferido para o presídio de Uberlândia[10].


Atuação jurídica decisiva para romper o ciclo de impunidade

Como advogado representante de uma das vítimas neste caso, pude testemunhar em primeira mão os desafios enfrentados por mulheres que denunciam agressores em posições de poder. A atuação jurídica foi fundamental para garantir a prisão preventiva de Renato Viana e sua posterior demissão do Itamaraty, após mais de 15 anos de histórico de agressões e diversos processos administrativos sem consequências significativas.

Este caso ilustra como instituições podem ser lentas em agir contra seus próprios membros, mesmo diante de evidências contundentes de comportamento criminoso. Foi necessária uma mobilização jurídica determinada para quebrar as barreiras de proteção institucional que permitiram que Viana continuasse em posição de prestígio apesar de seu histórico de violência.


Conclusão: lições e desafios no enfrentamento à violência institucionalizada

O caso Renato de Ávila Viana evidencia tanto os avanços proporcionados pela Lei Maria da Penha quanto os desafios ainda existentes no enfrentamento à violência contra mulheres praticada por autoridades. Apesar da lei garantir mecanismos de proteção mais eficazes, a influência de agressores em posições de poder ainda representa obstáculo significativo para que a justiça seja plenamente aplicada.

A demora de mais de uma década para que o Itamaraty tomasse medidas definitivas contra um funcionário com histórico de agressões demonstra a necessidade de aprimoramento dos mecanismos institucionais de responsabilização. Instituições públicas e privadas precisam estabelecer protocolos claros para investigar e punir condutas violentas de seus membros, independentemente de seu status ou posição hierárquica.

Este caso reforça a importância da atuação determinada de advogados, promotores, juízes e da sociedade civil organizada para garantir que a Lei Maria da Penha seja efetivamente aplicada a todos os agressores, independentemente de sua posição social. Somente com a quebra dos ciclos de impunidade será possível construir uma sociedade onde relacionamentos abusivos não encontrem guarida nas estruturas de poder que deveriam, em vez disso, proteger as vítimas e promover a justiça.



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